sexta-feira, 31 de outubro de 2008



O Bertolucci que me faltava

Eu, cinéfilo de meia-tigela, não conhecia La Luna




Foi há muito tempo – há muito tempo mesmo – numa sessão das oito no extinto Cine Guanabara que estava eu, acompanhado de um amigo e sua família católica, num cinema completamente lotado para assistir a Jesus de Nazaré, de Franco Zefirelli. Contando há quem não acredite. Depois de passarem o saudoso programa Canal 100, com os jogos de futebol magistralmente registrados em película, vieram os traillers, que, para espanto geral, não eram, naquela noite em especial, muito ortodoxos, ou seja, não eram muito católicos – entre a meia dúzia de filmes anunciados antes da atração da noite, havia pelo menos 3 deles com cenas de sexo. Uma cena com um casal fazendo amor na praia com seus corpos na penumbra, outra com um casal nu, agarrado, rolando na grama, outra com um bacanal num saveiro e um rapaz se masturbando freneticamente. Um dos filmes eu me lembro do nome: O Sol dos Amantes, do qual nunca mais ouvi falar. Bem. O pai católico à minha esquerda tapava os olhos da filha de 8 anos. Os adolescentes nas fileiras de trás assoviavam de forma entusiasmada. Não é sonho. Isso aconteceu mesmo. E estávamos ainda na ditadura militar, saibam. Só que o Cine Guanabara era um tipo de território livre, anacronicamente às avessas. À beira da falência, aceitava menores pagantes para assistir a pornochanchadas. Eu mesmo fui um deles, sempre na esperança – e quase sempre na certeza – de poder entrar pra ver filmes proibidos para menores. Mas o caso dos traillers na sessão de Jesus de Nazaré foi mesmo o cúmulo da falta de organização e de vergonha.

Quanto às famílias católicas, ao zeloso pai a tapar os olhos da filha, eu fico imaginando o que sentiriam se assistissem La Luna, de Bernardo Bertolucci. Eu não sabia, La Luna foi exibido nesta mesma época naquele cinema. Outro dia uma amiga me falou sobre o filme, que assistiu naquela sala e gostou muito. Me surpreendeu que ela tivesse mesmo gostado do filme, já que, embora eu ainda não o conhecesse, sabia se tratar de um filme com uma trama que envolvia o assunto incesto. Um detalhe importante é que minha amiga é evangélica. Isso poderia fazer pensar que ela atiraria pedras no filme. Mas, ao contrário, ela me descreveu o filme como muito belo. Mas há um detalhe sobre essa minha amiga. Ela é muito ligada a temas psicológicos, leitora de Freud, Piaget e toda sorte de livros de psicologia. Isso explica, em parte, o fenômeno. Voltarei a falar sobre o filme com ela, qualquer dia desses.

La Luna, produção americana dirigida por Bernardo Bertolucci, rodada em Roma, produzida em 1979, é um filme que não poderia ter passado tão despercebido como passou. Um moralismo da indústria cinematográfica – ou do próprio público, o que é mais provável – pode explicar o fato dum filme brilhante como este viver nesse ostracismo. Só no último domingo tive a chance de assisti-lo em meu DVD. Era o Bertolucci que faltava pra mim. O filme praticamente não é citado em listas, por isso não havia gerado meu interesse – eu, um pequeno fã da obra do grande diretor italiano vivo. Como eu pude não ter visto La Luna antes? É assim mesmo. Há também filmes do Wood Allen os quais ainda não vi. Até o emblemático Persona, de Ingmar Bergman, só fui assistir há poucas semanas, veja só.

Não é a primeira vez que escrevo sobre Bertolucci e sexo. Quando se pensa nesses temas associados, logo nos vêm à mente Último Tango em Paris, Beleza Roubada, e Os Sonhadores. Assistindo a esses 3 filmes temos a nítida impressão de que poucos cineastas falam de sexo com tanta contundência. Mas é importante evidenciar que o sexo não é tudo nesses filmes, e sim parte inseparável de um todo, como é a vida. De qualquer forma, para Bertolucci são preferíveis estórias que envolvam famílias atípicas. E para minha surpresa, o último limite da atipicidade eu viria encontrar, tardiamente, no filme La Luna. Com uma atuação hipnótica da, infelizmente, quase desconhecida atriz Jill Clayburgh, La Luna conta a estória de Caterina, uma mulher que vive intensamente uma relação de afeto (amor, ódio, busca de auto conhecimento) com seu único filho. Joe, o belo rapazinho de dentes irregulares, o menino de cidadania americana, não sabe que é filho adotivo por parte de pai, assim com não sabe que é italiano, e filho de um italiano. Com a morte do infeliz pai americano – é impressionante a cena do enterro –, mãe e filho viajam para a Itália onde buscam reencontrar o rumo das suas vidas. Respeitada cantora de ópera, Caterina vê diante da nova vida um vigor esquecido. Aprimora seu canto, intensificando-o, e sendo cada vez mais reconhecida por seu talento. Tenta reaproximar-se afetivamente do filho – algo que houvera negligenciado em sua infeliz vida na América. Nesta busca pelo entendimento do (e com o) filho, descobre que ele está viciado em heroína. Então abandona a música – ofício no qual depositara toda sua paixão – para dedicar-se ao confuso e dependente rapaz. No entanto, a não menos confusa e dependente mãe, com essa intensa aproximação, deixa aflorar em si sentimentos em relação ao filho que personificam o mais rígido dos tabus sexuais, numa montanha russa de sentimentos, que falam de culpa e desejo, de interação entre presente e passado. Talvez falem de um passado mal resolvido à costa do Mediterrâneo.

Sim, perturbador e cheio de humanidade, La Luna é, sem dúvida, o mais chocante filme de Bertolucci. E certamente um dos mais chocantes filmes já produzidos. Um prato cheio, uma refeição completa para os freudianos, e indigesta para os puritanos. O que diria o papai à sua filhinha diante de algumas cenas do filme? O que diriam aos seus filhinhos as cuidadosas mães que jamais pararam para pensar no assunto. Que assunto? O fio, tenso ou frouxo, porém irrompível, que liga mães e filhos, do nascimento até sempre. A frágil fronteira entre os sentimentos que regem o nosso estar social e sexual, orientando nosso comportamento regulado por mecanismos morais de defesa. A proximidade entre libido e afeto. De fato. Não sejamos radicais. Este não é mesmo um filme para se assistir em família, depois da novela. Ele não deve, na verdade, ser assistido por qualquer pessoa. Seu público é específico. A intensa viagem psicológica de La Luna, me faz agora ver o eterno Último Tango em Paris como um mero passeio sensual – e olha que estou falando deste que é um clássico indiscutível do cinema erótico.
E ainda há tempo para outros temas em La Luna. A música, por exemplo, é de uma força impressionante no filme. Em alguns momentos ela é algo orgânico para a trama, como a seqüência da chegada do piano, ou como na emocionante cena final. Os bastidores da ópera ocupam também lugar de destaque, em cenas especialmente atraentes – poucos filmes não-musicais tiveram sets de ópera tão bem cuidados. Toda a relação da personagem central com sua própria voz é de uma emocionante musicalidade. Até mesmo quando grita, Clayburgh é musical. O contraste de culturas também é tocado pelo filme. O rapaz americano, com seus tênis All Star, é mostrado como um corpo estranho nas ruas de Roma. Sofre com a solidão. E como se sentem solitários Caterina e Joe...

Com roteiro original do próprio Bertolucci (toda e estrutura e construção dos personagens pode fazer-nos pensar que se trate de um roteiro adaptado), e a bela, e em muitos momentos inventiva, fotografia de Vittorio Storaro, este é o filme que salvou meu domingo de pré-verão. Apesar do tema espinhoso e enfumaçado, o filme é, na verdade, um domingo. Um domingo de sol ao Mar Mediterrâneo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008



o homem bom


o homem bom desafia lúcifer
o funcionário de deus
lúcifer, o mordomo,
o espião, o capitão,
o inquisidor de deus

o homem bom cheira a flor
o homem bom inveja os heróis
por saber não poder ser tão herói como almeja
pois o homem bom é um poço da orgulho e vaidade
e tem em si o inimigo mais querido

o homem bom adora as mulheres
adoração de curvar-se mesmo
ele traz lembranças do calor do útero materno
ele reverencia cada útero que encontra em seu caminho
pois um útero para ele é um deus

o homem bom jamais esquece seus erros
é escravo da sua imperfeição
mas perdoa aos outros como gosta de se perdoar
tropeça, sangra o dedão
e segue de pé, na contramão de uma trilha

o homem bom pensa nos outros homens e mulheres
e o faz em tempo integral
e não esquece de nada, por saber
que a memória vale mais que a hora
hora é éter: memória é ouro

é mau o homem bom
é egoísta como um santo o homem bom
quer que o mundo fique melhor pra si, vejam só
mas um mundo melhor para todos
é apenas um efeito colateral do seu mundo perfeito.

(manhã de domingo, 12 de outubro de 2008)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008


Um triste aniversário

Luciano Fortunato Silveira
fortsilveira@yahoo.com.br


Ao começo deste mês outubro faz um ano do trágico caso dos três rapazes que foram mortos carbonizados, próximos à via férrea por onde trafegam grandes riquezas que passam por nosso município sem que delas desfrutemos. Na ocasião escrevi um texto sobre o ocorrido. O meu texto foi rejeitado por dois órgãos de comunicação regionais. Talvez em face desse ufanismo que nos faz pensar que vivemos em um paraíso, onde reina a paz, a ética e a boa moral. Um deles me propôs até a mudança de uma frase que foi julgada inadequada. E quando ao título que naquele momento dei à matéria “O dia em que a cidade sorriu diante da morte”, eu acrescentaria, hoje, um subtítulo importante, ficando “O dia em que a cidade sorriu diante da morte: ou pelo menos uma parte dela”. Agora o texto está sendo publicado na íntegra, como segue:

“O dia em que a cidade sorriu diante da morte

Foi na nossa querida cidade, Mendes, mas poderia ter sido em qualquer pacata cidade do nosso sul-fluminense, do Brasil ou do mundo.

Mendes sorriu. Três rapazes mortos eletrocutados. Seus corpos carbonizados, e, diante do quadro, uma platéia a comemorar a morte deles. Fotos espalhadas por toda a cidade. A tragédia transformada em espetáculo. Parece que nossos pacatos moradores não são muito diferentes dos de qualquer metrópole: são também insensíveis e cruéis.

Vivemos em um país dito cristão. Todo cristão deve conhecer a passagem bíblica em que Jesus proclama “...aquele que não tiver pecado que atire então a primeira pedra”. No entanto, a multidão de “santos” sentiu-se no direito de rir da desgraça alheia. Como se todos nós vivêssemos rigorosamente dentro da lei. Eu pergunto: quem nunca comprou um CD pirata ou outro produto ilegal? quem nunca se apropriou de absolutamente nada que não era seu? quem nunca praticou sonegação fiscal? quem de nós exige nota fiscal por um cafezinho ou um drops? E é bom que se saiba que quando deixamos de pedir uma simples nota fiscal – e nossos estudantes nem sabem o que é isto –, estamos desviando dinheiro que poderia estar indo para a saúde e para a educação, por exemplo.

Pois bem. Num sistema falho e corrompido – do qual somos coadjuvantes – ainda temos que conviver com a hipocrisia de parte da população que se considera gente 100% honesta, e que acha mesmo que a morte dos rapazes foi justa e oportuna. Alguns chegaram a lamentar o fato de um deles ter sobrevivido. Foram cabos elétricos. Mas se eles tivessem sido assassinados por uma milícia paramilitar – como essas que há nas favelas do Rio – o povo mendense não estaria menos satisfeito. Não me refiro a todo cidadão mendense, obviamente.

Aqueles jovens não nasceram ladrões. Não nasceram delinqüentes. E não tiveram tempo de se redimir. E, minha gente, isso não é engraçado. Não é satisfatório. Nenhuma morte pode ser considerada satisfatória. Se nossos adultos e anciãos fossem mais eficientes e justos (e não me refiro aos pais deles, e sim a toda nossa sociedade), casos como este poderiam ser evitados. Países com alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) – como Canadá e Finlândia – possuem baixíssimo índice de criminalidade. Praticamente não há roubos e furtos nas cidades finlandesas. Quanto a nós? Não temos nesse país educação de qualidade, não temos capacitação profissional, não temos empregos disponíveis, não temos distribuição de terra e renda: somos uma sociedade falida em todos os sentidos. Então resolvemos nossa angústia diante desta impotência como cidadãos, comemorando a morte de três rapazes pobres que tentavam furtar cabos. Estamos de parabéns.”

Na época em que o texto foi escrito, eu não havia ainda atentado para o fato de que o crime de Vilipêndio a Cadáver é punível com prisão. Muitos dos aviltadores que estavam no local do acontecimento, onde estavam aqueles corpos, poderiam estar hoje presos.

Penso, de maneira otimista, que Mendes não deve ser um resumo do mundo caótico e cruel em que vivemos, um micro-cosmo numa selva sócio-cultural onde tudo se repete, variando apenas em número e grau. Não, senhoras e senhores. Cabem, sei que sim, muito mais coisas, boas e belas, entre nossas discretas montanhas verdes. Isso depende, claro, da forma como usaremos a nossa tão conhecida paz.

(L.F.S.)