Incômodas questões sobre o “nazi-fascismo” levantadas pelo filme A Fita Branca
Hitler é, provavelmente, a figura mais satanizada da história contemporânea. Nele foi centrada a figura do mal absoluto, tipificada em um único homem. É este o senso comum que perdurou por muitos anos – e ainda resiste. Como se o líder carismático que ele foi tivesse um poder inigualável de atrair simpatizantes ao seu projeto nazi-fascista, justificando-o inquestionavelmente. Como se os militares e civis a ele subordinados tivessem sido inevitavelmente manipulados. Como se a eficaz máquina de propaganda do partido nazista no poder tivesse feito uma lavagem cerebral no povo alemão, ocultando deste a barbárie. Como se a população alemã fosse inocentemente manobrada pela inteligência nazista. E mais. Muitos têm a ilusão de que a xenofobia e os campos de concentração e de extermínio foram uma invenção alemã.
Este tipo de visão foi a mais aceita pelo grande público durante muitos anos, e isto, em alguma medida, conveio a muitos interesses nacionais, como defende uma nova historiografia que associa a existência do fascismo às premissas nacionalistas. A busca pelas raízes do nazismo no fascismo – não apenas no fascismo italiano, mas no fascismo como um sentimento nascido com os nacionalismos de um modo mais abrangente – sempre foi algo relegado a um plano de importância menor, quando não ao esquecimento. O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro levanta diversas questões acerca do tema em seu artigo Os Fascismos (Coleção “O século XX”, da Editora Civilização Brasileira). O professor defende a idéia de que não houve “o fascismo” (italiano, influenciando o nazismo alemão), mas sim vários fascismos, ao longo de várias épocas. As origens do fascismo teriam sido negligenciadas, e ainda, o próprio fascismo como se popularizou na Itália e Alemanha, teria passado, pós Segunda Guerra e pós Holocausto, por um tipo de esquecimento conveniente a vários setores de direita, desconsiderando-se e ocultando a continuidade do pensamento fascista, que acabou se revelando nos anos oitenta com a exposição na mídia de grupos fascistas em vários países. Ele diz que “grande parte da busca pelo esquecimento, ao lado de uma loquaz condenação quase que exclusiva ao que denominavam de hitlerismo (versão restritiva, personalística e exclusivamente alemã do fascismo), coube à historiografia ocidental”. Para Teixeira da Silva os historiadores tenderam a uma visão superficial do assunto, pois no momento imediatamente ao pós-guerra o tema dominante passaria a ser a Guerra Fria, objeto de atração inevitável de grande parte dos estudos em história que contemplavam a dicotomia capitalismo-comunismo. E, mais do que isso, escreve ele em seu artigo, “aos interesses estratégicos dos Estados Unidos, a primeira versão da história do fascismo, apaziguadora e restritiva, interessava diretamente na medida em que se contrapunha a uma das estratégias básicas dos comunistas: a tentativa de monopolizar e manter mobilizada a resistência, ou, ao menos, a resistência armada ao fascismo”. Pior. O fascismo não só passou por um período de esquecimento, como até mesmo “os Estados Unidos atenuavam a legislação sobre a desnazificação, restringindo-a apenas aos Hauptschuldige, os principais culpados (nos crimes do nazismo) e dispensando os comprometidos (Belastete), os comprometidos menores (MInderbelastete) e os seguidores (Mitläufer)”. Essa atenuação das punições acabaria, em pouco tempo, por transformar quase todos os envolvidos nos crimes de guerra praticados, em meros seguidores do nazismo passíveis de penas menores, como se quase-inocentes fossem. Desta forma, muitos seguidores do nazismo foram inocentados. O que motivou tal processo de absolvição é ainda uma incógnita e potencial objeto de pesquisa. O diretor e roteirista Michael Haneke, em seu filme A Fita Branca (Das Weisse Band) – premiado em 2009 com a palma de ouro em Cannes e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor fotografia, feita de belíssimas imagens em preto e branco – fez em seu longa um estudo sobre a “inocência” alemã que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e, claro a conseqüente ascensão do partido nazista. Indo, desta forma, além do que estamos habituados a ver no cinema sobre o nazismo: tramas ambientadas na Segunda Guerra Mundial. Em A Fita Branca a trama se passa às vésperas da Primeira Guerra, onde as sementes fascistas do nazismo já estavam cuidadosamente – ou inadvertidamente – bem plantadas.
A crítica cinematográfica internacional parece ter sido unânime ao laurear o filme por sua técnica. E, de fato, ela é impressionante. A fotografia usa e abusa de variações: ora longos planos abertos, com câmera estática em tripé, ora o uso de movimentação dinâmica que acompanha os passos de um personagem, mesmo na escuridão total, num preto e branco que deixa tudo tão distante, em contraste com os close-ups e o grande trabalho de todo o elenco, que deixa tudo tão próximo e íntimo do expectador: todo o elenco está irrepreensível. É um filme primoroso em quase todos os possíveis aspectos da arte cinematográfica. O mesmo unânime prestígio A Fita Branca não parece gozar ao lado de historiadores e sociólogos, que, pelo que li, dividiram opiniões. Há quem tenha visto no diretor a intenção de “germanizar” o fascismo, restringindo sua visão histórica. Há quem identifique na trama uma tentativa de explicação psicológica, baseada em traumas infantis (sofridos pelas crianças alemãs personagens do filme), para explicar o nazismo e o holocausto – o que novamente entra em desacordo com alguns historiadores, pois há uma idéia de que não se deve explicar eventos sócio-políticos que envolvem toda uma nação, ou mais nações, a partir do ponto de vista individual, numa ótica de transferência de repressão, que é objeto da psicanálise. Para a História, uma análise psicológica dos acontecimentos não é normalmente bem aceita. Não tenho eu a intenção de fazer parte deste julgamento. Eu teria que perguntar a ele (o austríaco Michael Haneke), por exemplo, o que o motivou a fazer um filme ambientado na Alemanha do começo do século XX. Bem... Ele poderia me responder que se sua intenção era fazer um filme sobre o nazismo a ambientação não poderia dar-se de outra forma – e isso foi, inclusive, amplamente divulgado. O narrador no início do filme faz essa menção em sua fala, deixando bem claras as intenções do filme: “os eventos que se passaram ali, naquele vilarejo, no início do século, são de extrema importância para se compreender os eventos dramáticos que aconteceriam na Alemanha décadas depois”. Esta chamada, utilizando-se o recurso de um narrador deslocado, deixa bastante claro o direcionamento pretendido pelo diretor, e penso que se não fosse ela, provavelmente, muitos espectadores jamais saberiam que o tema de A Fita Branca é o nazi-fascismo.
A aldeia retratada (no filme que é uma ficção com roteiro original) por Haneke é um pequeno povoado alemão onde famílias vivem de forma miserável. E não falo aqui de miséria física. A população que vive sob rígida doutrina protestante é infeliz em todos os sentidos. Ninguém sorri. Quando muito, nos momentos mais felizes, algum personagem esboça ligeiramente um sorriso. Sob a rigidez moral impingida com o esforço do preconceituoso pastor local, há um mar de lama onde o que de mais abjeto há no comportamento humano fica imerso. Uma sociedade patriarcal, exacerbadamente machista, praticante de todos os tipos possíveis de humilhação às mulheres, incluindo mesmo aquilo que tem caráter imoral, como a humilhação sexual, que chega ao seu limite quando um pai decide manter relações incestuosas com a filha, em substituição à esposa que ele insulta e humilha de todas as formas por julgá-la feia e velha. Um ambiente em que as crianças estão constantemente sob ameaça de punições, onde até mesmo o direto de brincar lhes é retirado. Um menino tem suas mãos atadas à cama para que não se masturbe durante a noite. Dormir sem jantar ou tomar surras são castigos naturalizados. Estas mesmas crianças que são expostas a rigores e humilhações por parte dos homens adultos, também mostram, em certas situações sua crueldade – ou devolvem, em dados momentos, a crueldade que é constantemente depositada nelas. Elas também sabem como ser cruéis. Com seu secreto sadismo, são elas, como fica subentendido ao final do filme, as responsáveis por vários crimes ocorridos na vila, como a perfuração dos olhos do menino com problemas mentais, filho do não menos sádico barão que comanda o local, como um tipo de senhor feudal. A punição ao menino deficiente por parte dos outros meninos seria uma representação precoce do que viria se manifestar durante o período nazista, quando muitos doentes foram eliminados. As crianças do filme, que recebem punições o tempo todo por motivos banais, ficam impunes ante suas maiores perversidades, cometidas fora do alcance dos olhares adultos. O menino deficiente era o contrário da pureza pretendida pelo sacerdote da aldeia. E, como toda “impureza” deveria ser punida – e as crianças da aldeia eram constantemente punidas pela falta desta pureza –, elas, as crianças, decidem punir o pobre menino, reproduzindo à sua maneira as regras que aprenderam. Mussolini com seu fascismo, Hitler com seu nazi-fascismo, e todos os seus colaboradores e reprodutores “propunham um mesmo programa, partilhavam a mesma concepção de mundo, criavam mecanismos similares de manipulação de massas, votavam o mesmo ódio e desprezo pelo liberalismo (...) e perseguiam da mesma forma minorias identificadas com a alteridade (ou seja, ‘os diferentes’), tais como judeus, homossexuais, comunistas e deficientes físicos”, diz Teixeira da Silva.
Dentre muitas cenas fortes, me chamam especialmente a atenção algumas que escapam ao clima de constante crueldade velada da trama, como aquelas que envolvem o menino, o pastor e o passarinho. O pastor faz severas recomendações ao menino que quer criar um passarinho. O menino é advertido sobre a enorme responsabilidade que tem agora em suas mãos, ou seja, a responsabilidade sobre a vida do animal. A criança aceita o desafio e consegue dar ao pássaro os cuidados de que ele necessita, alimentando-o e cuidando dele com zelo, o que dá orgulho ao pastor, também pai, sentindo-se este satisfeito pela “boa educação” que conseguira dar ao menino. Isso faz pensar sobre as possibilidades de que não só de forma patológica e brutal é feita a busca pelo poder, mas também de um senso de cuidado e proteção aos subordinados, aos cativos. O menino cuidou do pássaro, como o pai cuidou do menino. Assim como o líder absoluto de uma nação “cuidaria” dos compatriotas. Contudo, há uma triste questão: estariam todos, na verdade, vivendo entre grades, sob a ilusão da proteção?
É possível entendermos a vila do filme como um microcosmo, se pensarmos numa universalidade do fascismo. Desta forma retiraríamos dos alemães a exclusividade do empreendimento do fascismo, materializado nas operações nazistas. Pergunto: seria então, desta maneira, o fascismo fruto das ações punitivas e restritivas de um tipo de sociedade – enraizada em toda a Europa e outras partes do planeta – onde o excessivo poder conferido aos homens em detrimento das mulheres, onde os mais “fortes” são homenageados e respeitados, onde a rigidez de uma moral religiosa punitiva e restritiva dão a tônica do comportamento recomendável e aceitável? Seria o ideal de pureza desejado pelo pastor do filme algo impossível de ser alcançado pelas pessoas, que “debaixo dos panos” acabam cometendo todo tipo de pecado? Seria a obcecada busca por esta pureza o próprio desejo fascista? Seria o fascismo um fenômeno atemporal, fruto do amontoado de valores que construímos ao longo dos séculos, o que chamamos de humanidade? Teríamos vocação para crueldade, e por esse motivo assistir a um filme como A Fita Branca nós choca tanto, sendo estas imagens uma espécie de espelho indesejável do que podemos ser, a depender das circunstâncias?
Quando assisti A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, imaginei que seria impossível o cinema realizar algo mais chocante sobre o nazismo. Agora vendo A Fita Branca relativizei minha idéia: este último me soa mais pesado. Talvez me pareça uma coisa mais feia e cruel do que a visão dos monstros, a visão de como eles nascem. Embora quando pequenos eles não tenham, a princípio, cara de monstro.
(L.F.)
A Fita Branca (Das Weisse Band)
Duração: 144 min.
Origem: Áustria, França, Alemanha e Itália
Ano: 2009
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Fotografia: Chistian Berger
Para ler:
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Os fascismos. in: O século XX / organização: Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, Celeste Zenha – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Volume 2. O tempo das crises: revoluções, fascismo e guerras.
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
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