sexta-feira, 21 de agosto de 2009
A caixa
Sim, o vermelho no fundo do vaso sanitário era mesmo menstruação. Aliviada por estar eu livre da possível iminência de uma gravidez avassaladora como um atentado terrorista, até me incomodei menos com o sangue que sempre fora tão incômodo, algo próximo do repulsivo pra mim. Sangrar lembra morrer. Ser mulher não é mole. Você tem que dar de qualquer maneira: se não dá seu sangue mensalmente, dará carne nove meses depois. O som que vinha da sala enchia a casa com a linda voz de Jeff Buckley cantando Haleluiah. Lembro da gente no parque de diversões como crianças nos brinquedos, nossos sorrisos eternos, e sei agora que a vida não é um parque de diversões. A vida é sangue.
Tenho algo a contar sobre sangue e sobre vida. Tudo começou – ora, que bobagem, isso não é um filme pra ter começo, e mal podemos saber se o mundo teve um começo. Bem. Na primeira vez que o vi ele parecia mais bonito e menos inteligente, e, de alguma forma, aquilo me atraiu. Camisa semi aberta deixando vazar os pêlos do peito. Um ar levemente infantil, mas não no sentido de inocente. Tive um pequeno tremor percorrendo todo o meu corpo: pés, ventre e peito. De trás do balcão perguntei em que eu poderia ajudar. Três meses depois estávamos nus numa cama, abraçados e lutando contra nossos egos. Havia muito tempo que eu não dormia nua abraçada com alguém, o que finalmente aconteceu naquela noite. Ele foi além das minhas expectativas. E eu também. Não firmamos pactos verbais, no entanto, nascia ali a minha amizade mais prezada. Ele e eu.
O que eu espero de um homem? Espero que ele seja bom. Bom de bem. Bom no sentido cristão da palavra. Ele tem que ser um pouco parecido com Jesus Cristo. Tem que parecer um pouco com Che Guevara. Tem que ser um pouco Marlon Brando. Talvez um pouco Lúcifer. Mas não um Lúcifer traidor e mentiroso. E, sim, um Lúcifer que arromba a porta do paraíso e entra com novidades. E foi isso o que ele fez. Ele foi meu anjo da segurança e meu demônio a me provocar indagações nunca antes por mim feitas. Penso em um homem que me faça perguntar coisas o tempo inteiro... Sei que isso é cansativo demais. No entanto, creio ser um ingrediente indispensável a um homem que venha ser meu. Meu... Meu... Às vezes penso que o mundo inteiro é meu. Noutras, nem meu umbigo me pertence.
As coisas íntimas, quentes, duras e úmidas que tocavam nós dois iam muito bem, obrigada! Um dia senti que precisava comprar uma cama mais forte, e assim o fiz. Ele achou a cama muito cara – ele sempre achava as coisas caras –, mas era um consenso entre nós que a velha cama não agüentaria mais. Noutro dia vi que precisaríamos de um carro para nossos piqueniques e ele concordou também em comprar. E acho que não compramos mais nada de valor. Tanto eu como ele nunca pudemos comprar muito. Contudo ele nunca parou de adquirir bugigangas. Certo dia ele trouxe uma caixinha colorida dizendo que havia comprado num camelô. Ele estava muito sério e taciturno, e, com cerimônia, disse que havia conhecido um homem muito estranho, de quem comprara a tal caixa. Perguntei que caixa era aquela e pra que servia e se havia alguma coisa dentro e quanto tinha custado e onde havia comprado e o porquê de ter feito e você precisa parar de comprar bugigangas e que caixa bonita tão colorida e posso abrir? “Não”, disse ele. “Não agora”.
Anoiteceu. A luz do abajur era amarelada e fazia nossos corpos nus ficarem avermelhados, destacando-se na paisagem negra do quarto. No criado-mudo, sob o abajur, a caixa. Enquanto fazíamos amor eu dava rápidas olhadas para ela, que também parecia olhar para mim. Era um pouco menor que uma caixa de sapatos e parecia ser bem velha, de papelão, com retalhos de tecido colorido colados. O sexo naquela noite era uma mera formalidade, uma preparação para algo maior que um rotineiro orgasmo, uma mera preliminar nervosa e formal – mas ainda assim prazerosa – para o que haveria de vir, algo relacionado, obviamente, ao assunto caixa colorida. Gozou. Nem cigarro acendeu. Silêncio. “E aí? Não vai falar nada?” “Falar o que?”, ele perguntou respondendo à minha pergunta, após o silencioso e tenso embate amoroso que fazíamos tão bem até no piloto automático. “A caixa, porra!”. Ele fez mais um silêncio, abaixando a cabeça e olhando para o nada, com seu gesto compreensivo à minha irritação e angustiada curiosidade. “Tá bom, a caixa”, respondeu. Levantou-se e fiquei sentada na cama olhando, nua, em todos os sentidos nua. Então ele me falou com o mais assustador tom de voz que eu poderia esperar vindo de alguém doce como ele. Assustador pelo silêncio contido naquela voz sussurrada e carregada de dor, medo, bondade e suicídio. “Nunca conte a ninguém o que vai acontecer agora. Nem para a sua melhor amiga”. Só me restava, paralisada, assentir com a cabeça. Me levou para o tapete onde sentamos. Com a caixa em mãos, que ele colocou no chão, entre nós, que nos fitávamos os corpos e o objeto. Abriu a caixa. “Não aconteceu nada...”, resmunguei com respeito. “Espere. Me dá a mão. As duas. Feche os olhos”. Obedeci. E assim nós fizemos.
Abrimos então os olhos. Eu abri primeiro. A mais chocante surpresa da minha vida até então. Por um momento pensei estar dormindo. As coisas ao nosso redor haviam mudado. O quarto era diferente. Era claro. Eram outras cores nas paredes. Era dia. E na minha frente ele era um menino de uns oito ou nove anos. Olhei para as minhas mãos delicadas, toquei meus cabelos. Eram os meus longos cabelos lisos e muito leves e soltos da menina leve e solta que fui e voltava, no encantamento daquele instante, a ser. Uma voz de mulher chama de um outro cômodo – provavelmente da cozinha – por quem deveria ser seu filho: “Marcos! Você está aí?”. Ele me olha e não tarda a responder à mulher, gritando com a voz verde e sábia de menino: “Tô aqui, mãe!” “Tudo bem, meu filho?” “Tudo bem, mãe!” “Não vai sair desse quarto?” “Espera aí, mãe, já vou!”. No centro do quarto ela, a caixa colorida, aberta, com a tampa caída ao lado. “O que acontece agora?”, perguntei. No que ele falou algo que eu não gostaria de ter ouvido naquele momento: “Se fecharmos a tampa agora, nunca mais voltaremos”. E concluiu ainda: “Se decidirmos fechar, não nos lembraremos do que aconteceu. Nunca mais”. Refleti sobre a grande esperança hipotética tola que muitos de nós temos ao dizermos que tudo poderia ser diferente se fôssemos mais jovens e pudéssemos agir com o equilíbrio e bom proveito que só a idade madura traz. Sabem como é... O lance de voltar a ser criança, mas com cabeça de adulto. Que grande besteira. Além do mais, nunca somos maduros o suficiente. Parece que apodrecemos antes de podermos provar o verdadeiro dulçor da vida. O dulçor da verdade dos nossos corpos vivos. O dulçor inacessível de nossas almas. Eu tinha naquele momento que tomar uma decisão entre fechar ou não a caixa. Entre começar de novo ou ter a possibilidade de voltar à vida normal adulta, com meus trinta e poucos anos, meus seios já ficando flácidos, minhas nádegas pesando, minhas pálpebras pesando, minhas olheiras, minhas marcas, tendo, contudo a possibilidade da experiência da viagem daquela caixa no meu currículo. Das duas opções, qual a mais válida? Naquela hora não pensei em qual seria a mais justa. Somos egoístas. Apenas pensei em qual seria a melhor pra mim.
Abri com cuidado a porta do quarto para que a mãe dele não me visse. Saí pisando macio em direção ao banheiro. De frente pro espelho eu fiquei chocada ao me ver menina. Meus olhos enormes como sempre foram, meu rosto imaculado, meus lábios cheios, meus cabelos longos ruivos – e que saudade eu tinha daqueles cabelos longos –, meus seios inexistentes. Seios. A falta dos seios talvez tenha sido o que mais me chocou dentre tudo o que eu via, na seqüência de choques psicoelétricos a que me expus sem muitas alternativas de defesa. Não era repulsivo aquele peito reto como de um menino, mas também não deixava de ser aterrorizante. Acho que nisso eu comecei a ter clareza sobre a questão de fechar ou não a caixa. Nisso eu percebi com quase-certeza de que preferia ser mulher a ser menina. Notei como eu gostava de ser mulher. Na verdade eu via a mulher no fundo dos olhos da menina no espelho. De repente a figura dele aparece também no espelho. Estava ele atrás de mim. E me tocou. Me tocou como faz um homem e não como faria um menino. Nós dois com os olhos no espelho. Dois rostos e corpos de criança. Ele, com seu peito encostado nas minhas costas, envolveu com seus braços finos a minha cintura e logo em seguida pôs as suas suaves mãos no local onde deveriam estar meus seios, como se elas, as mãos dele, fossem dois seios postiços em meu corpo. “Se fecharmos a caixa... Se nós fecharmos a caixa, esqueceremos este momento?” “Sim”.
Voltamos de mãos dadas pelo corredor que parecia imenso como todas as coisas que parecem imensas quando somos crianças. No quarto, a caixa aberta esperando uma decisão nossa. Sentamos novamente diante dela. “O que fazemos pra voltar?” “É só fecharmos os nossos olhos por um instante prolongado fazendo uma oração, e quando abrirmos eles, estaremos de volta ao nosso quarto escuro, e seremos adultos novamente”. Haveria então, desta forma, apenas o abajur amarelo no meio da realidade preta e nossos corpos nus a chorar inteiros, imaginei. Então, assim fechamos os olhos com medo. E inundados de coragem.
Olhos se abrem. Quarto escuro. Abajur amarelo aceso. Nossos corpos visíveis a olhos nus.Imediatamente ele fechou a caixa: agora podia. Então choramos como eu imaginava que ocorreria. Saímos no começo do dia, antes do sol nascer completamente, e, do alto de uma ponte, jogamos a caixa à correnteza. Boiou um pouco, e depois afundou. Não éramos mais como antes. Nada mais seria como antes. Os dias passaram e nosso comportamento havia mesmo mudado. Falávamos menos. Não que estivéssemos infelizes – muito pelo contrário. Apenas falávamos menos. Em compensação havia um fato novo a incidir em nosso cotidiano: nós brincávamos. Brincávamos feito crianças. E com brincadeiras de criança. As mais variadas brincadeiras infantis. Pique, amarelinha, pipa, polícia e ladrão, jogos de tabuleiro, jogos com palavras – como jogo da forca –, salada mista... O problema com a salada mista é que só tínhamos uma pessoa pra beijar, e a brincadeira terminava com aquilo que crianças não fazem, o que, no fim das contas, deixava tudo muito melhor. Depois de duas semanas brincando como crianças e pensando como crianças e gozando como crianças, certa tarde, num parque de diversões onde rodávamos como discos de newton sorridentes, de todas as formas possíveis de brincar e em todos os brinquedos, falei a ele, enquanto passeávamos cansados e excitados, comendo algodão doce como se fosse aquilo o mais delicioso manjar, sobre como eu era feliz com a sua companhia. Sabia que nem eu nem ele estávamos arrependidos de termos fechado a caixa e de tê-la jogado no rio.
Chegando em casa, níveis de adrenalina mais baixos, senti um pouco de enjôo. Teria sido a montanha russa? Três dias de enjôo se seguiram. Gravidez. Era a minha suspeita. Menstruação atrasada. Então não poderia ser outra coisa. Angústia antes de ir à farmácia e comprar um teste. “Amanhã eu compro”, pensei. Telefonei pra ele. Precisava contar a novidade. Eu não tinha certeza da gravidez, mas gostaria que ele compartilhasse comigo aquela incerteza. Chamou. Ninguém atendeu. Tentei de novo. E de novo, e de novo. Ele não estava no trabalho? Poderia ter dado uma saída. Que ele pudesse estar com outra menina – ou melhor, mulher – não passava pela minha cabeça, definitivamente. Bem... Não sei se eu pensei nisso. Traição? Não. Não seria. E como narradora ciente do passado eu posso afirmar que não se tratava disso. Desisti então de tentar ligar. Comecei a sentir cólicas. Ele voltou do trabalho mais tarde que de costume. Tudo bem. Cólicas. Sono. Noite aprofunda. Sonhos inquietos. Manhã: 6 e meia. Cólica. Banheiro. Vaso sanitário. Sangue. Graças a Deus, sangue. Eu não abortaria, acho. De toda forma, melhor assim. “Talvez um dia eu seja mãe. Não agora”. Depois do pequeno susto, não sei bem por que motivo, abandonamos as brincadeiras de criança. Que pena.
Vários anos se passaram. Como se fosse da noite pro dia, o vi na sala, sentado no sofá, indiferente a mim, com uma latinha de cerveja e uma barriga bem acima do recomendável, assistindo futebol – ele, que no passado bem pouco gostava de futebol. Eu lavava a louça do almoço na cozinha, e com as mãos cheias de espuma de detergente vislumbrava aquele novo homem, outrora tão especial, agora tão comum. Fui ao banheiro. Olhei para os meus cabelos e vi que a tintura necessitava de retoque. Alguns fios brancos começavam a pipocar. Isso sem falar nas marcas de expressão – esse apelido delicado que usam para substituir a palavra ruga. Minha menstruação estava bastante atrasada. No entanto, desta vez algo me intrigava: não havia motivos para que eu estivesse grávida, se é que me entendem. As brincadeiras na cama já não eram regulares, e, com certeza, no período em que eu deveria estar ovulando, não havíamos feito sexo. Não era agora o fantasma da gravidez indesejada o que me aborrecia. O novo espectro tinha o nome técnico de menopausa. Esta eu gostaria que esperasse por mais uns dez anos, sinceramente.
Já fazia uns quinze dias que minha menstruação deveria ter chegado. Tudo bem. descobri um frasco da minha tintura na dispensa. Cabelos devidamente retocados, fui eu pra rua na segunda-feira pela manhã. Era uma lindíssima manhã de sol e o espelho amanhecera dizendo que eu era bonita. Andando livre pela feira, sentindo todos os aromas gratificada, observando todas as cores e ouvindo com prazer barulho de gente que comprava e vendia naquela zona de comércio ao estilo medieval, eu ia. Então, numa barraca de quinquilharias avistei o objeto vivo: a caixa. A caixa era mais que um fantasma. A caixa era uma ressurreição encarnada. Era quadridimensional. Era, afinal, tátil. Perguntei quanto era. O cara esquisito da barraca não respondeu, apenas olhando pra mim. Percebi que a pergunta não era necessária. Percebi que era só eu pegar e levar. Que ela estava ali para que eu a pegasse e levasse pra casa. Peguei. Já em casa, entrei depressa, temendo a possibilidade de que Marcos estivesse lá e me visse assustada. Com ela guardada em minha bolsa de feira com bordados e fuxicos, fui direto para o banheiro, e decidi que se eu pudesse ter a chance de passar de novo pela minha inesquecível experiência vivida com ela há anos, eu optaria desta vez em terminar de forma diferente, pelo retorno à menina. Mas desta vez eu é que teria que dirigir o ritual, ao contrário de como ocorrera na ocasião em que fora ele quem me surgiu com o objeto misterioso. Quando ele chegou do trabalho, cabisbaixo como já virara praxe, eu, agora mais preparada psicologicamente, lhe falei: “Tenho algo aqui”. Então mostrei a caixa a ele. Passado seu terrível choque inicial, após longo e sufocante silêncio, pronunciou-se: “Eu não quero mais”. Puxa vida. Eu precisava dele pra fazer a coisa e algo me dizia que eu não poderia convencê-lo a participar. Cólica forte. Banheiro. Vaso sanitário. Sangue no fundo do vaso. Espelho. Lagrima e sorriso nos olhos. Olhos no espelho, olhos no vaso com a tinta vermelha viva. Espelho. Vaso. Espelho. “Foda-se”. E eu pensei – como costumava pensar em vários momentos da minha vida – sobre como era bom ser mulher. Tive vontade de gritar pelo basculante “Como é bom ser mulher!”. Ele apareceu na porta do banheiro querendo negociar a decisão sobre a caixa. Sem entrar, com as mãos no batente, perguntou: “Ainda quer?”. Minha resposta foi negativa. “Tá legal assim, Marcos. Também não quero mais”. Pensei em perguntar se ele me amava, mas preferi não, pois eu já sabia há muito tempo que isso não é pergunta que se faça. Sentenciei: “Amanhã pela manhã, antes do sol nascer completamente, iremos à ponte, falou?” “Cê quem sabe”. Carinho e compreensão eu pude perceber naquele momento em sua voz que sempre fora um misto de timbre de homem e menino. Eu nunca havia achado tão lindo o vermelho no fundo do vaso.
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