Viva O Rappa!
Perdoemos sete vezes – ou mais – os críticos que não sabem o que dizem.
Se pensarmos que os Beatles foram reprovados por boa parte dos críticos musicais contemporâneos seus, não nos incomodaremos com a morna recepção dada recentemente ao novo disco d’O Rappa – nós, que somos fãs do grupo. E me perdoe quem não gosta.
Há hoje duas correntes visíveis e importantes do jornalismo musical brasileiro. Vemos aqueles jornalistas que desprezam tudo aquilo que é sucesso de público, dando valor e tentando realçar os bons músicos que não conseguem grande projeção. Eles gostam de “samba de raiz”, músicas regionais, experimentalismos quaisquer, além de nomes que fizeram sucesso no passado e foram esquecidos. É um grupo de escritores, sem dúvida, na maioria das vezes, bem intencionado, que prezam a ética e a coerência. Uma outra corrente é daqueles que ficam esperando – e até alardeando – um “novo Jimi Hendrix”, um “novo Kurt Cobain”, um “novo Cazuza”, uma nova Gal Costa” – como se Gal não estivesse viva –, num insensato esforço de comparação. Eles são sonhadores nostálgicos, e, não raro, têm saudade de uma época que não viveram. Gente boa. Mas o fato é que esses dois exemplos de crítico musical não são do tipo – raro – que é capaz de fazer um grande elogio a um grupo que esteja sempre em evidência na mídia, como O Rappa, ainda que este apresente um trabalho de grande qualidade. Eles são do tipo que não deixariam os Beatles serem os Beatles – guardadas, obviamente, pois não sou trouxa, as devidas proporções entre Beatles e Rappa.
Sete Vezes, disco novo da banda carioca é, com licença, bom pra caralho. É um disco poderoso. Isso mesmo: poderoso. Os pontos positivos encontrados no novo trabalho são inúmeros. O grupo não perdeu a pungência das letras – o que alguns esperavam com a saída do genial Marcelo Yuka, 3 discos atrás –, não perdeu sua originalidade, adquiriu um entrosamento e uma técnica instrumental melhor – o que já se mostrava no disco acústico e pode ser sentido neste Sete Vezes à primeira audição, com os bons “riffs” de guitarra de Xandão e com o baixo límpido e firme de Lauro Farias. O multi-instrumentista Marcelo Lobato continua criando boas texturas com seus teclados e “derivados”, e a voz de Falcão é praticamente a mesma do primeiro disco da banda, quando eles eram apenas uma “reggae band”, só que, agora, com direito a maior liberdade às suas ininteligibilidades fonéticas – meu deus, mas o que é isso que eu falei?
Faixas – No primeiro verso do disco, Falcão reclama, com um lirismo místico inusitado, cantando “Meu santo tá cansado”, na canção que tem este título. Nesta faixa de abertura já se nota equilíbrio sonoro, num arranjo rico em detalhes e ruídos diversos, sem que o resultado fique confuso ou “estourado”. Uma guitarrinha meio “vintage” abre a segunda faixa Verdade de Feirante. Aliás, a guitarra de Xandão se transmuta no decorrer da música em algo à la The Edge, do U2. Na discografia da banda este é o disco em que o guitarrista
apresenta o seu melhor trabalho como músico – sem virtuosismo, porém eficiente. A faixa Meu Mundo é o Barro, um reggae típico, conta com uma letra que remete ao velho estilo do fundador da banda, o ex-Rappa, Yuka, em seus primeiros trabalhos, num tipo de crônica de homem simples e excluído. A canção começa: “Moço/ peço licença/ eu sou novo aqui/ não tenho trabalho nem classe/ eu sou novo aqui...”. E prossegue: “...sou quase um cara/ não tenho cor nem padrinho/ nasci no mundo /sou sozinho...”. Na seqüência a letra toca também na religiosidade: “...tentei ser crente/ mas meu Cristo é diferente/ a sombra dele é sem cruz...”. A faixa que batiza o álbum, 7 Vezes, é primorosa. É, diferentemente da maioria das músicas d’O Rappa, uma canção de amor – ao menos assim me pareceu. O ritmo é lento é ultra-agradável e o resultado é harmonioso. Monstro Invisível, que foi a música inicial de trabalho do álbum, já é tocada em todo o país. O refrão “...vejo a minha história com a sua comungar...” é incógnito e vigoroso. É claro que o monstro invisível do título não é o vocalista, mas, vou te falar: Falcão canta como um monstro, magistralmente – se não como um grande cantor, como um magnífico vocalista de rock. A décima faixa é Súplica Cearense, da obra do enigmático compositor baiano Gordurinha, que fez carreira no rádio nos anos 50. Seus maiores sucessos são Vendedor de Caranguejo e Chiclete com Banana. Gordurinha influenciou Zé Ramalho, Novos Baianos, Gilberto Gil e até Chico Science. Aqui em ritmo de reggae, Súplica Cearense é uma música que não pode deixar de ser notada, como um tipo de canção que já valeria o preço de qualquer disco. Homenagem oportuna que enriquece ainda mais este belo e extraordinariamente bem gravado novo disco d’O Rappa, banda da qual o Rio de Janeiro e o Brasil devem se orgulhar.
Sim, é verdade, se orgulhar. Sei que há hoje um grande preconceito contra coisas associadas ao funk, como é o caso do hip-hop. E O Rappa é uma banda que mescla, essencialmente, reggae, rock e hip-hop. Todos nos orgulhamos do samba, que tem raízes africanas; nos orgulhamos dos ritmos nordestinos, com um forte pé na Europa medieval; e reverenciamos grandes roqueiros brasileiros como Raul Seixas, mesmo sendo rock uma cultura nascida nos Estados Unidos. E é assim mesmo, não há cultura que não seja um processamento de influências, se formos pensar bem. Raul cultuava Elvis. Elvis cultuava o blues. O rock é uma atualização do blues. É, blues... Assim como jazz... São crias estadunidenses. Sem blues não haveria rock. Sem rock não haveria Beatles, sem Beatles não haveria a Tropicália e o Clube da esquina, por exemplo. A música popular viajou séculos até chegar onde estamos hoje, com o vasto cardápio do qual dispomos, onde uma banda pode ser naturalmente eclética, bebendo de fontes diversas, e ao mesmo tempo soar originalíssima e coesa como O Rappa. Se uma das melhores bandas pop-rock dos anos 90 é, de fato, o Rage Against the Machine, que combinou hip-hop e rock, e foi tremendamente influente, temos, provavelmente, numa linha parecida, algo ainda melhor: uma banda que acrescentou à mistura a voz da periferia carioca, o grito do cidadão oprimido e trabalhador, a voz do poeta popular brasileiro, na nossa invejável língua portuguesa.
Perdoemos sete vezes – ou mais – os críticos que não sabem o que dizem.
Se pensarmos que os Beatles foram reprovados por boa parte dos críticos musicais contemporâneos seus, não nos incomodaremos com a morna recepção dada recentemente ao novo disco d’O Rappa – nós, que somos fãs do grupo. E me perdoe quem não gosta.
Há hoje duas correntes visíveis e importantes do jornalismo musical brasileiro. Vemos aqueles jornalistas que desprezam tudo aquilo que é sucesso de público, dando valor e tentando realçar os bons músicos que não conseguem grande projeção. Eles gostam de “samba de raiz”, músicas regionais, experimentalismos quaisquer, além de nomes que fizeram sucesso no passado e foram esquecidos. É um grupo de escritores, sem dúvida, na maioria das vezes, bem intencionado, que prezam a ética e a coerência. Uma outra corrente é daqueles que ficam esperando – e até alardeando – um “novo Jimi Hendrix”, um “novo Kurt Cobain”, um “novo Cazuza”, uma nova Gal Costa” – como se Gal não estivesse viva –, num insensato esforço de comparação. Eles são sonhadores nostálgicos, e, não raro, têm saudade de uma época que não viveram. Gente boa. Mas o fato é que esses dois exemplos de crítico musical não são do tipo – raro – que é capaz de fazer um grande elogio a um grupo que esteja sempre em evidência na mídia, como O Rappa, ainda que este apresente um trabalho de grande qualidade. Eles são do tipo que não deixariam os Beatles serem os Beatles – guardadas, obviamente, pois não sou trouxa, as devidas proporções entre Beatles e Rappa.
Sete Vezes, disco novo da banda carioca é, com licença, bom pra caralho. É um disco poderoso. Isso mesmo: poderoso. Os pontos positivos encontrados no novo trabalho são inúmeros. O grupo não perdeu a pungência das letras – o que alguns esperavam com a saída do genial Marcelo Yuka, 3 discos atrás –, não perdeu sua originalidade, adquiriu um entrosamento e uma técnica instrumental melhor – o que já se mostrava no disco acústico e pode ser sentido neste Sete Vezes à primeira audição, com os bons “riffs” de guitarra de Xandão e com o baixo límpido e firme de Lauro Farias. O multi-instrumentista Marcelo Lobato continua criando boas texturas com seus teclados e “derivados”, e a voz de Falcão é praticamente a mesma do primeiro disco da banda, quando eles eram apenas uma “reggae band”, só que, agora, com direito a maior liberdade às suas ininteligibilidades fonéticas – meu deus, mas o que é isso que eu falei?
Faixas – No primeiro verso do disco, Falcão reclama, com um lirismo místico inusitado, cantando “Meu santo tá cansado”, na canção que tem este título. Nesta faixa de abertura já se nota equilíbrio sonoro, num arranjo rico em detalhes e ruídos diversos, sem que o resultado fique confuso ou “estourado”. Uma guitarrinha meio “vintage” abre a segunda faixa Verdade de Feirante. Aliás, a guitarra de Xandão se transmuta no decorrer da música em algo à la The Edge, do U2. Na discografia da banda este é o disco em que o guitarrista
apresenta o seu melhor trabalho como músico – sem virtuosismo, porém eficiente. A faixa Meu Mundo é o Barro, um reggae típico, conta com uma letra que remete ao velho estilo do fundador da banda, o ex-Rappa, Yuka, em seus primeiros trabalhos, num tipo de crônica de homem simples e excluído. A canção começa: “Moço/ peço licença/ eu sou novo aqui/ não tenho trabalho nem classe/ eu sou novo aqui...”. E prossegue: “...sou quase um cara/ não tenho cor nem padrinho/ nasci no mundo /sou sozinho...”. Na seqüência a letra toca também na religiosidade: “...tentei ser crente/ mas meu Cristo é diferente/ a sombra dele é sem cruz...”. A faixa que batiza o álbum, 7 Vezes, é primorosa. É, diferentemente da maioria das músicas d’O Rappa, uma canção de amor – ao menos assim me pareceu. O ritmo é lento é ultra-agradável e o resultado é harmonioso. Monstro Invisível, que foi a música inicial de trabalho do álbum, já é tocada em todo o país. O refrão “...vejo a minha história com a sua comungar...” é incógnito e vigoroso. É claro que o monstro invisível do título não é o vocalista, mas, vou te falar: Falcão canta como um monstro, magistralmente – se não como um grande cantor, como um magnífico vocalista de rock. A décima faixa é Súplica Cearense, da obra do enigmático compositor baiano Gordurinha, que fez carreira no rádio nos anos 50. Seus maiores sucessos são Vendedor de Caranguejo e Chiclete com Banana. Gordurinha influenciou Zé Ramalho, Novos Baianos, Gilberto Gil e até Chico Science. Aqui em ritmo de reggae, Súplica Cearense é uma música que não pode deixar de ser notada, como um tipo de canção que já valeria o preço de qualquer disco. Homenagem oportuna que enriquece ainda mais este belo e extraordinariamente bem gravado novo disco d’O Rappa, banda da qual o Rio de Janeiro e o Brasil devem se orgulhar.
Sim, é verdade, se orgulhar. Sei que há hoje um grande preconceito contra coisas associadas ao funk, como é o caso do hip-hop. E O Rappa é uma banda que mescla, essencialmente, reggae, rock e hip-hop. Todos nos orgulhamos do samba, que tem raízes africanas; nos orgulhamos dos ritmos nordestinos, com um forte pé na Europa medieval; e reverenciamos grandes roqueiros brasileiros como Raul Seixas, mesmo sendo rock uma cultura nascida nos Estados Unidos. E é assim mesmo, não há cultura que não seja um processamento de influências, se formos pensar bem. Raul cultuava Elvis. Elvis cultuava o blues. O rock é uma atualização do blues. É, blues... Assim como jazz... São crias estadunidenses. Sem blues não haveria rock. Sem rock não haveria Beatles, sem Beatles não haveria a Tropicália e o Clube da esquina, por exemplo. A música popular viajou séculos até chegar onde estamos hoje, com o vasto cardápio do qual dispomos, onde uma banda pode ser naturalmente eclética, bebendo de fontes diversas, e ao mesmo tempo soar originalíssima e coesa como O Rappa. Se uma das melhores bandas pop-rock dos anos 90 é, de fato, o Rage Against the Machine, que combinou hip-hop e rock, e foi tremendamente influente, temos, provavelmente, numa linha parecida, algo ainda melhor: uma banda que acrescentou à mistura a voz da periferia carioca, o grito do cidadão oprimido e trabalhador, a voz do poeta popular brasileiro, na nossa invejável língua portuguesa.
2 comentários:
Olha, eu gosto do Rappa, mas não me considero fã. Contudo, depois desse belo texto, com certeza, irei rever meu olhar sobre a banda. A amarração de suas idéias foi brilhante!
Abç
Carolina - Itabuna - BA
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